Rui Zink. .. Paz na Terra
O museu da inocência Para a Cecília e para o Tiago
No ano findo uma colega minha morreu. A Cecília. Com 67 anos. Ainda era nova, podia ter vivido mais uns anos, mas também podia ter vivido menos. 67 não é mau de todo. É mau, mas não mau de todo.
Eu estava a arrumar coisas no gabinete que partilhávamos e descobri trabalhos que ela guardara de alunos de há muitos anos. Reconheci o nome de alguns deles. A um deles, desses alunos que chegavam novinhos em folha à faculdade, perplexos como querubins, eu ia ver por acaso daí a uns dias. É agora um quarentão bem instalado, bem casado, feliz com a sua vida e a sua carreira. É uma alegria que ultimamente não tenho assim tanto, a de ver ex-alunos felizes, prósperos, bem casados e com uma boa carreira, vá lá saber-se porquê.
A Cecília e eu somos do tempo em que guardávamos trabalhos de alunos, e também somos do tempo em que muitos dos nossos alunos gostavam que lhes devolvêssemos os trabalhos. Aqui devo dizer que é algo que sempre encorajei, inclusive contando o meu caso. A minha mãe guardou um poema que lhe dediquei quando eu tinha 10 anos, cheio de rimas em ão e ãe, mas que hoje fazem parte do meu museu interior. O meu museu da inocência, para citar o título de um belo romance do único Nobel turco, Orhan Pamuk.
E isto de guardar o que escrevemos, mesmo que apenas para a escola, funciona até com livros. Lembro-me de um livro que li aos 18 anos e adorei, o ‘Fragmentos de um discurso amoroso’ do Roland Barthes, um livro híbrido, meio ficção, meio crónica, meio enciclopédia, meio autobiografia. Aliás, foi o segundo ensaio que li a dar-me um prazer estranho e comovente.
O primeiro fora ‘Unidade e diversidade em Fernando Pessoa’, de Jacinto do Prado Coelho (o pai do Eduardo), que salvo erro li aos 14. Ainda acho que é o melhor livro sobre Fernando Pessoa alguma vez escrito. Ambos me deliciaram e tornaram claro para mim uma coisa simples: que ler um ensaio luminoso pode dar tanto prazer estético como ler um romance. Mais até do que muitos romances, sobretudo se cheios de clichês e apenas confirmando o óbvio.
Gostei muito dos ‘Fragmentos’ e, como o livro era meu, sublinhei. É o que digo aos alunos. Sublinhem os livros, escrevam nas margens, para isso Deus criou as margens nas páginas. E respondam ao texto. Faço sempre a piadola à pai: “Mas primeiro comprem o livro. Se for vosso, podem fazê-lo.” E ainda hoje guardo o meu exemplar do ‘Fragmentos do discurso amoroso’, esse romance-ensaio, viagem, enciclopédia do amor, escrito por um homem que diz logo na epígrafe: “Eu sou um escritor, mas também sou um professor de literatura, também sou um ensaísta, um linguista, um filósofo, um francês… mas além disso sou alguém que ama e que amou. Pode-se lá viver sem amar, como dizia Júlio Dantas.
E eu tenho lá ‘respostas’ nas margens do meu exemplar, umas ingénuas, outras pertinentes. Às vezes indignei-me: “Não é assim!” Outras concordava. Noutras começava a divagar e a fazer longas notas de rodapé. Comentários sobre um texto que já era ele próprio comentário, um livro que já de si era um comentário, à linguagem e á gramática e aos lugares do amor.
E tento sempre dar esse exemplo aos meus alunos. Infelizmente hoje em dia eles estão a mudar. Não têm memória de si mesmos, não querem ter memória de si mesmos. O ano passado tive uma desfeita, devolvi-lhes trabalhos e testes e eles não quiseram. (Terá havido um com interesse em guardar o que escreveu nas aulas.)
A turma deste ano suspeito que irá pelo mesmo caminho. Ou talvez não, só amanhã saberei. Mas pude dar um belo presente de Natal ao meu ex-aluno já quarentão: o trabalho que, vinte e tal anos antes, ele fez no primeiro ano de faculdade para a Professora Cecília Barreira. E sei que adorou, porque me deu um abraço.
Eu estava a arrumar coisas no gabinete que partilhávamos e descobri trabalhos que ela guardara de alunos de há muitos anos. Reconheci o nome de alguns deles. A um deles, desses alunos que chegavam novinhos em folha à faculdade, perplexos como querubins, eu ia ver por acaso daí a uns dias. É agora um quarentão bem instalado, bem casado, feliz com a sua vida e a sua carreira. É uma alegria que ultimamente não tenho assim tanto, a de ver ex-alunos felizes, prósperos, bem casados e com uma boa carreira, vá lá saber-se porquê.
A Cecília e eu somos do tempo em que guardávamos trabalhos de alunos, e também somos do tempo em que muitos dos nossos alunos gostavam que lhes devolvêssemos os trabalhos. Aqui devo dizer que é algo que sempre encorajei, inclusive contando o meu caso. A minha mãe guardou um poema que lhe dediquei quando eu tinha 10 anos, cheio de rimas em ão e ãe, mas que hoje fazem parte do meu museu interior. O meu museu da inocência, para citar o título de um belo romance do único Nobel turco, Orhan Pamuk.
E isto de guardar o que escrevemos, mesmo que apenas para a escola, funciona até com livros. Lembro-me de um livro que li aos 18 anos e adorei, o ‘Fragmentos de um discurso amoroso’ do Roland Barthes, um livro híbrido, meio ficção, meio crónica, meio enciclopédia, meio autobiografia. Aliás, foi o segundo ensaio que li a dar-me um prazer estranho e comovente.
O primeiro fora ‘Unidade e diversidade em Fernando Pessoa’, de Jacinto do Prado Coelho (o pai do Eduardo), que salvo erro li aos 14. Ainda acho que é o melhor livro sobre Fernando Pessoa alguma vez escrito. Ambos me deliciaram e tornaram claro para mim uma coisa simples: que ler um ensaio luminoso pode dar tanto prazer estético como ler um romance. Mais até do que muitos romances, sobretudo se cheios de clichês e apenas confirmando o óbvio.
Gostei muito dos ‘Fragmentos’ e, como o livro era meu, sublinhei. É o que digo aos alunos. Sublinhem os livros, escrevam nas margens, para isso Deus criou as margens nas páginas. E respondam ao texto. Faço sempre a piadola à pai: “Mas primeiro comprem o livro. Se for vosso, podem fazê-lo.” E ainda hoje guardo o meu exemplar do ‘Fragmentos do discurso amoroso’, esse romance-ensaio, viagem, enciclopédia do amor, escrito por um homem que diz logo na epígrafe: “Eu sou um escritor, mas também sou um professor de literatura, também sou um ensaísta, um linguista, um filósofo, um francês… mas além disso sou alguém que ama e que amou. Pode-se lá viver sem amar, como dizia Júlio Dantas.
E eu tenho lá ‘respostas’ nas margens do meu exemplar, umas ingénuas, outras pertinentes. Às vezes indignei-me: “Não é assim!” Outras concordava. Noutras começava a divagar e a fazer longas notas de rodapé. Comentários sobre um texto que já era ele próprio comentário, um livro que já de si era um comentário, à linguagem e á gramática e aos lugares do amor.
E tento sempre dar esse exemplo aos meus alunos. Infelizmente hoje em dia eles estão a mudar. Não têm memória de si mesmos, não querem ter memória de si mesmos. O ano passado tive uma desfeita, devolvi-lhes trabalhos e testes e eles não quiseram. (Terá havido um com interesse em guardar o que escreveu nas aulas.)
A turma deste ano suspeito que irá pelo mesmo caminho. Ou talvez não, só amanhã saberei. Mas pude dar um belo presente de Natal ao meu ex-aluno já quarentão: o trabalho que, vinte e tal anos antes, ele fez no primeiro ano de faculdade para a Professora Cecília Barreira. E sei que adorou, porque me deu um abraço.